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domingo, 18 de setembro de 2011

Crime abrevia infância e põe sociedade à prova

18 de Setembro de 2011 - 07:00

Tentativa de assalto no Calçadão, envolvendo meninos de 9 a 11 anos, expõe violência cada vez mais precoce

Por DANIELA ARBEX
O franzino P., de 10 anos, foi punido pela mãe, após infrações, sendo obrigado a colocar a mão na chama do fogão
O franzino P., de 10 anos, foi punido pela mãe, após infrações, sendo obrigado a colocar a mão na chama do fogão
Populares indignados com uma tentativa de assalto a uma loja de celulares, ocorrida no final do mês passado, na Rua Halfeld, cercaram os infratores, promoveram xingamentos e, de forma ameaçadora, pediram a punição imediata dos envolvidos. Os alvos de tanta fúria eram três crianças de 9, 10 e 11 anos que haviam puxado os cabelos de uma vendedora, com o intuito de roubar os telefones da vitrine que ela havia acabado de arrumar. Tratados como criminosos, os garotos foram salvos pelo soldado Evaldo Sanches Medeiros, policial militar da 30ª Companhia destacado para o atendimento da ocorrência, que mostrou-se capaz de compreender a complexidade da situação. Para preservar a integridade física das crianças e evitar risco de linchamento, o PM tirou os meninos do meio da rua e os abrigou no interior do estabelecimento comercial.
O caso emblemático revela uma tragédia social: a morte da infância. O fato de garotos estarem à frente de ações de violência é preocupante. Pior ainda é ver crianças pobres, sem amor e sem limites, serem alçadas ao posto de bandidos contumazes. Para especialistas, uma sociedade que tem medo de suas crianças e protege-se contra elas ao invés de ampará-las avança em direção ao passado de barbárie. Em busca de respostas para o fenômeno da violência que criminaliza a infância brasileira, a Tribuna mergulhou no universo dos meninos envolvidos no episódio do Calçadão. A busca levou o jornal ao coração do tráfico de drogas da Vila Olavo Costa - bairro onde residem -, ao encontro de famílias esfaceladas pela droga e pela miséria e à constatação de que nem sempre o Estado tem conseguido arcar com o papel de proteção de crianças que sofrem negligência familiar.
"Foi a primeira vez que atendi uma ocorrência envolvendo crianças. Me impressionou o fato de começarem tão cedo na vida do crime. Porém, minha maior surpresa foi perceber a reação da população. A maioria ficou inflamada, respondeu aos xingamentos desses garotos e, em atitude condenatória, tratou meninos como adultos. Populares chegaram a pedir a prisão deles. Muitos se comportaram de forma agressiva. Como houve aglomeração na porta da loja, decidi pedir reforço para que nada de grave acontecesse àquelas crianças. O que me fez agir assim foi o meu dever como policial militar e minha responsabilidade como cidadão", afirmou o soldado Medeiros.
Para o psicopedagogo Celso Antunes, a reação da população no episódio revela uma sociedade encurralada. "Nada justifica uma atitude violenta contra crianças. Mas nós, adultos, estamos acuados por tantas circunstâncias de violência, que isso desencadeia atitudes irracionais. A sociedade está com medo, e toda organização que tem medo torna-se agressiva e reage de forma perigosa."
Intolerância
Rudá Ricci, doutor em sociologia, preocupa-se com a intolerância que toma conta da sociedade. "O Brasil está se transformando em um país no qual a defesa do direito pessoal vem se sobrepondo aos direitos civis, às crenças solidárias e ao interesse coletivo. Atualmente, há uma intolerância muito grande em relação à pobreza. Tudo que tenha esse rótulo é radicalmente rejeitado, e isso inclui a infância e adolescência brasileira, que são a maioria pobre no Brasil. Ao invés de haver ações de promoção desta população, está se desenvolvendo um escárnio em relação a ela, e isso não constrói política pública. O que acho mais desastroso são os adultos não enxergarem que estão por trás do comportamento violento da criança. É mais fácil criminalizar a infância, porque ela é mais frágil, não tem voz, voto, nem é capaz de se organizar socialmente."
A psicóloga Nathália Meneghine acredita que a falta de intervenções sociais junto a esse grupo poderá comprometer o futuro. "Se essa infância não for cuidada, onde poderemos chegar? Que profissionais e pais de família vamos ter? Esse ciclo de violência não se interrompe sozinho. É preciso intervenção da sociedade e adoção de políticas públicas. Quando a gente sente medo da criança, essa repulsa é o encontro também com a nossa responsabilidade nisso. É um horror olhar para ela e reconhecer tão pouco da representação da infância. Ou transformamos isso em comprometimento e trabalho ou nos afastamos e reproduzimos o discurso do encarceramento. Quando não se dá lugar ao sujeito na sociedade, a violência torna-se uma das vias de reivindicação."

Condições de vida degradantes

A realidade de J., 9 anos, P., 10, e N., 11, os garotos que participaram da tentativa de assalto no Centro, não lembra em nada o universo infantil. Os dois mais velhos são primos e residem numa área de invasão na Vila Olavo Costa, em condições degradantes. Ainda na entrada do bairro, a equipe de reportagem foi alertada que só conseguiria acessar o local com autorização de traficantes. A decisão da equipe foi avançar, mesmo sem o sinal verde do tráfico. Como o número da moradia não constava no boletim de ocorrência, foi preciso bater de casa em casa, mas a lei do silêncio dificultou a localização dos meninos.
A busca terminou em uma moradia erguida de frente para o que restou de um campo de futebol. A área tomada por mato e usuários de droga tornou a apuração tensa. Antes de encontrar P., a Tribuna havia descoberto que sua mãe é dependente de álcool e possui múltiplos parceiros. Passam o dia e às noites fora de casa, deixando o menino sozinho ou na companhia da avó, que é aposentada e tem outras sete crianças para tomar conta, entre elas N., 11, cuja mãe, usuária de drogas, morreu este ano em decorrência da Aids.
Quando P. aparece na porta de casa, descalço, a reação da equipe é de espanto devido ao tamanho do menino. Franzino, o garoto negro dá entrevista dentro do carro do jornal, devido ao risco de permanência da equipe no local. Durante a conversa, outra constatação: aluno do terceiro ano do ensino fundamental da rede pública, P. não sabe ler e escreve pouco. Nunca conheceu o pai e sequer sabe o seu nome, e, apesar de participar de programa social da Prefeitura, queixa-se de "passar o dia em frente à televisão".
Castigo
Ele conta que, quando foi apreendido na tentativa de assalto no Calçadão, chorou muito. "Sabia que ia levar mais uma surra da minha mãe." A surra não aconteceu. No lugar de tapas, P., flagrado dias depois com maconha na mochila dentro do projeto social que participa, teve a mão colocada no fogo pela mãe, que usou o fogão da casa para aplicar a "lição". Questionado sobre que emprego a mãe tem, ele a protege e mente: "Ela é faxineira." Por causa da negligência familiar, P. viveu institucionalizado a maior parte da infância, mas, quando voltou para a família, não encontrou condições melhores do que aquelas de quando partiu. Atualmente, ele divide o imóvel de cinco cômodos com outras 11 pessoas.
A área em que mora é considerada tão perigosa que, no dia da ocorrência no Centro, a conselheira tutelar Bernadete Botega dos Santos precisou de cobertura policial para chegar ao endereço dos primos. De fato, aquele não é um lugar adequado para uma criança viver. Aliás, para nenhum ser humano. "N. e P. têm tudo para serem boas pessoas, só precisavam de apoio. A mãe de P. também foi muito maltratada e passa para ele o que aprendeu. A família foi orientada, e a guarda deve ser transferida para a avó. Também fizemos encaminhamento dos garotos para os órgãos de atendimento da rede municipal. Mas, na verdade, muitas vezes, o Estado não consegue realizar esse papel de proteção. É preciso que o Poder Público olhe mais por estas crianças. Não adianta dizer que elas são prioridade, sem vaga em creche, qualidade nas escolas e mais programas sociais", afirma a conselheira.
Programa do Governo estadual, o "Travessia bairro", vai injetar R$ 3,6 milhões na Vila Olavo Costa, com o objetivo de modificar essa realidade. Os recursos serão aplicados em infraestrutura, melhoria das residências e dos equipamentos públicos.

Aula prática para uso de drogas

J., o garoto de 9 anos que fugiu da loja de celular quando a funcionária gritou por socorro, é o mesmo menino que aparece no vídeo descoberto, este ano, pela Polícia Civil, no qual adultos o ensinam a fumar substância semelhante a maconha na Vila Olavo Costa, na região conhecida como Horto. Nascido numa família de usuários de droga, incluindo a mãe, o padrasto e a irmã, J. cresceu na rua, sendo negligenciado por toda a vida. Aos 7 anos, mudou-se para a vila, quando passou a envolver-se em delitos. No dia da tentativa de assalto, ele deveria estar abrigado numa instituição de acolhimento mantida pela Prefeitura, para onde foi encaminhado por determinação judicial. Mas o menino evadiu do local destinado a dar-lhe proteção e até hoje não foi localizado.
"J. é muito vivido na rua e, quando uma criança está na rua, alguém a acolhe. Por isso, ele foi abrigado. Não sabíamos que não estava mais no abrigo. Ele foi para lá para receber proteção, já que o trabalho de recuperação da família leva tempo", observa a conselheira Bernadete Botega dos Santos, do Conselho Sul/Oeste.
'Não podemos prendê-lo'
A chefe do Departamento de Proteção Especial da Secretaria de Assistência Social, Maria das Dores Barbosa, alega que não houve omissão da entidade de acolhimento. "O abrigo é uma casa de proteção, onde o menino é acompanhado enquanto não pode voltar para a família. Como ele não está internado, não pode ser privado do direito de ir à escola, de participar de cursos. Não podemos prendê-lo e, sim, motivá-lo a participar do convívio comunitário, para que ele volte a ser um cidadão de direitos e deveres. Ele estava dando respostas muito positivas e foi inserido nestas ações, visando ao fortalecimento da possibilidade de retorno à família e ao convívio social. Estimulá-lo a participar não significa que o deixamos à revelia. Não houve negligência, já que os técnicos e a coordenadora da entidade são muito empenhados. Mas, numa dessas ações, ele evadiu. O fato foi comunicado à Vara da Infância e à família. Não sabemos seu paradeiro, mas, se tiver que retornar, ele será acolhido novamente."
Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, ao ato infracional praticado por crianças caberá orientação, apoio e acompanhamento temporário, bem como requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico em nível hospitalar ou ambulatorial. Além disso, inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, abrigamento em entidade e colocação em família substituta. O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta.

Sociedade não pode culpá-los sozinhos

A redução da maioridade penal é apontada como uma das propostas para frear a violência cometida pela população infantojuvenil no Brasil e tem o apoio da maioria dos brasileiros. Segundo o consultor em políticas públicas Rudá Ricci, pesquisas recentes apontam que 70% da população são favoráveis à medida. No entanto, estudo da Unicef divulgado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos revela que 54 países que adotaram a norma não conseguiram diminuir as ações violentas entre meninos e jovens, levando algumas nações a recuarem. Além disso, quando a questão é analisada estatisticamente, aponta-se para outro rumo. No Brasil, por exemplo, crianças e adolescentes são responsáveis por 10% dos homicídios cometidos, porém são vítimas em mais de 40% dos casos de assassinatos. Os dados descaracterizam a periculosidade imposta a essa população e reforçam a necessidade de investimento na infância.
"Uma criança que assalta aos 11 anos está morrendo como criança, e uma sociedade que deseja linchar meninos não acredita mais na vida. O que nós precisamos é de pactos pela vida", defende o coordenador das ações sociais de Minas, Marcelo Garcia. Na opinião da psicóloga Nathália Meneghine, o esfacelamento da família, a miséria e a predominância do tráfico de drogas empurram crianças para fora da infância, mas é preciso encontrar saídas. "Não podemos cristalizar esses meninos na condição de vítimas, nem tomá-los como culpados sozinhos. A escola, as intervenções sociais, a possibilidade de tratamento, tudo isso tem uma incidência importante para apontar outros percursos. Qual é o lugar que temos para esses meninos no nosso discurso? De pouca aposta. Hoje se discute mais a redução da maioridade penal que a criação de políticas de atendimento. Precisamos sustentar uma aposta nessas crianças enquanto sujeitos, para que esse lugar na marginalidade não esteja determinado. Criança no crime é uma produção social."
Para o assistente social da Vara da Infância e Juventude, Márcio Alvim, uma infância diferente necessita de ação. "Só educando e promovendo esses meninos é que vamos evitar que eles, futuramente, caiam numa vara criminal. Mesmo com todas as dificuldades, sempre há a possibilidade de transformar a realidade de crianças sem amor, sem pai ou conceito de família. Basta querer."

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